« Home | É um pássaro? É um avião? » | Um código díficil de se decifrar » | Pela Honra e Humildade » | Whisky ou vinho branco? Tragédia ou comédia? » | Os sem-floresta – Over the Hegde » | A Noiva Síria - Ha-Kala Ha-Surit » | Finais Felizes - Happy Endings »

A história da boca que sangra contra a sangria da memória

Tatiane Klein

Se os 103 minutos desse filme, indicado à Palma de Ouro por melhor direção, tivessem apenas o caráter de informar ao espectador uma das muitas atrocidades cometidas durante a ditadura que contaminava a Argentina desde 1974 e toma corpo oficial em 24 de março de 1976, já seria o bastante. Fazer história através do vídeo para evitar o esquecimento -como aponta a também argentina crítica literária Beatriz Sarlo, em Paisagens imaginárias- conta, e muito, para dar muletas à essa memória manca da barbárie observada na América Latina durante os anos 60 e 70. Entretanto, o filme, de roteiro inspirado no livro Pase libre, crónica de una fuga, de Cláudio Tamburrini, não se resume ao testemunho emocionado da história real do autor, prisioneiro na Mansion Seré durante 120 dias.

Crônica de uma fuga é contado a partir da perseguição e prisão de Cláudio (Rodrigo de La Serna, de Diários de Motocicleta), estudante de filosofia e goleiro do Club Atlético Almagro, em virtude de um suposto envolvimento com o movimento comunista. O clichê que pode em um primeiro momento aparecer na figura do mocinho preso por engano, ou do comunista herói (essas as duas possibilidades de função de Cláudio no início do filme) é desconstruído pela própria dubiedade que mistifica o protagonista: esse é o primeiro patamar de um suspense que não vai ser dissolvido facilmente. Após ser torturado em sua casa, ele é levado à Mansion Seré e, sem compreender muito bem o que acontece, é vendado e preso em um quarto junto a outro jovem. Nesse momento, pouco sabe Cláudio, e pouco sabe o público. Dificilmente conseguimos emitir um juízo estável sobre a verdadeira relação do personagem com o comunismo, e é sob essa tensão que o lugar comum vai ser abafado pelo realismo pungente dessa história. O dilema sobre os posicionamentos políticos de Cláudio vai ser logo desfeito, mas o clima de ebulição sensorial que ele inaugura, não.

Quanto à violência constante na tela, ela faz menos por anestesiar-nos diante da dor daqueles que são vigiados por homens, que oscilam entre o pai e o algoz, mas mais por gerar empatia imediata. Em alguns momentos, a crueldade narrada molda-se em tamanho realismo que chegamos a duvidar dos padrões comuns da verossimilhança: as cenas parecem olhares, a partir ângulos que distorcem a perspectiva da atrocidade comesinha (aquela que costumamos ver nos programas policiais de fim de tarde), exaltando um retrato praticamente hiper-real (próximo à ficção dos thrillers hollywoodianos). Sentados nas poltronas, somos embrenhados tão profundamente na história de paixão e sonho de redenção de Cláudio e três companheiros presos, Huguito, Guillermo e Gallego, que se tem a impressão da experiência mais que verdadeira, embora fantástica e inacreditável. A câmera, mesmo na posição tradicional da observação externa, se coloca de tal modo amarrada à perspectiva dos fugitivos, que o olhar do público é facilmente transportado aos nós do enredo.

Toda a estética cinematográfica nesta obra se apresenta quase como a de um filme de suspense comum, porém a perspectiva nauseante da realidade do relato impede que a exploração banal da estética da violência. A produção soube instrumentalizar ferramentas cinematográficas e envolvê-las em ambiente e enredo referentes a história da repressão pelas ditaduras militares na América Latina. A ela não compete discutir que conflito era esse, se da tentativa da civilização contra a resistência da barbárie, ou se de barbarizados contra barbarizados, numa luta em que cegos opressores ignoram que, talvez, os comedores de criancinhas não sejam os comunistas, mas a própria lógica do capital. Compete sim viabilizar aos que só tem a chance de ‘lembrar para não permitir que se repita’ tanto a observação de rascante realidade, quanto a sensação quase visceral dela.

Crônica de uma fuga fere à brasa a nostalgia negativa do espectador, incita o frio na espinha e o horror, através de imagens e sons que se revelam “com dor e verdade descarnada, mas também com toda a esperança e toda a vontade de viver com que os fatos realmente ocorreram”, segundo o próprio Cláudio Tamburrini, acerca de seu livro. E para não esquecer, não adianta só voltar o olhar, mas é preciso ainda, mesmo de forma imaginária, sentir o gosto do sangue entre os dentes quando das botinadas na cara deformada.

Crônica de uma fuga (Crónica de una fuga)
Argentina, 2006
Direção: Adrián Caetano Elenco: Rodrigo de La Serna, Pablo Echarri, Nazareno Casero, Lautaro Delgado e Leonardo Bargiga. Duração: 103 min