29.5.07

No fim do mundo... E no fim da trilogia


Rafael Teixeira

Com certeza, quando o Pérola Negra tomou os mares, ninguém esperava que ele o fizesse mais outras duas vezes na grande telona. O que parecia apenas um blockbuster, entretenimento familiar, diversão despretensiosa e filme-pipoca, acabou se tornando um fenômeno de bilheteria e lançou moda. Piratas do Caribe se tornou uma das seqüências mais proveitosas da Disney. A franquia reviveu as grandes histórias de pirataria e ainda lançou um ícone cinematográfico, interpretado por Johnny Depp: Jack Sparrow, o malicioso, esperto, carismático, engraçado e afetado pirata, capitão da agora famosa embarcação.

Piratas do Caribe: No Fim do Mundo, é o último capítulo da trilogia bucaneira, mas não fique surpreendido se por acaso surgir um quarto episódio. Dessa vez Will Turner (na atuação enjoativa de Orlando Bloom) e Elizabeth Swann (e os biquinhos típicos de Keira Knightley) com a ajuda do ressuscitado capitão Barbossa (o divertidíssimo Geoffrey Rush) e toda a tripulação do Pérola Negra, tem de resgatar Sparrow do mundo dos mortos.

Isso porque, dando continuidade aos dois outros filmes, Lord Cutler Beckett tomou conta dos mares e a pirataria corre o risco de deixar de existir para sempre. Assim, é convocada Confraria dos Lordes Piratas, grupo dos nove maiores capitães dos quatro cantos do mundo (que incluem Sparrow e Barbossa) para que possam decidir o que fazer diante de sua completa aniquilação. Ainda volta também o temido Davy Jones, que acaba sendo chantageado a lutar do lado de Beckett.

No Fim do Mundo deixa a desejar em todos os aspectos, exceto em beleza visual. Por uma bagatela de 300 milhões de dólares, a Disney criou cenários incríveis, batalhas épicas, monstros mais que realistas e tudo o que não pode faltar num blockbuster de aventura. De resto o filme é no mínimo confuso, com uma teia de traições e negociações difícil de acompanhar, e enfadonha se você considerar que o filme tem seus “rápidos” 168 minutos. Sem falar nas inúmeras informações inseridas de sopetão, sem nenhuma menção nos outros dois filmes, como a deusa Calypso, a própria Confraria, etc. Mas se você não der a mínima para esses detalhes do roteiro, pode aproveitar a ação desenfreada.

De atuações mesmo, só a de Geoffrey Rush e Johnny Depp, que ainda consegue ser bastante engraçado, mesmo que todos os trejeitos de Sparrow já estejam visivelmente desgastados nesse terceiro episódio. E se você prestar bastante atenção, atenção mesmo, você encontrará um Chow-Yun Fat cheio de cicatrizes como o capitão Sao Feng, em uma participação quase relâmpago, um mero coadjuvante estrelinha pra rechear os cartazes do filme. Há ainda outra participação rápida nesse capítulo final, uma menor ainda que a de Fat, mas que está sendo muito mais comentada, a do Rolling Stone Keith Richards, como figura paterna de Sparrow.

E depois de todo aquele tempo sentado olhando para mais água e água, o filme acaba num daqueles finais bem decepcionantes. Aí você sai da sala confirmando a teoria de que seqüências que surgem pelo sucesso de seus episódios anteriores só tendem a piorar mesmo, mas nem isso você ousa falar porque já é mais que óbvio. Deve ser coisa de cabala, numerologia. O três não deve trazer muita sorte ou coisa do gênero. E levando em consideração que praticamente estamos no ano do três, e que o novo do Homem-Aranha também foi uma grande decepção... Resta esperar Shrek Terceiro para confirmar a maldição desse número.

Piratas do Caribe: No Fim do Mundo (Pirates of the Caribbean: At the World’s End)
EUA, 2007
Direção: Gore Verbinski Elenco: Johnny Depp, Geoffrey Rush, Orlando Bloom, Keira Knightley e Chow-Yun Fat. Duração: 168 min.

Mais que sonhadores

Saulo Yassuda

"O ‘Jules e Jim’ brasileiro! O ‘Jules e Jim’ brasileiro" Foram essas as palavras que Caio Blat disse ter ouvido de muitos franceses no Festival de Biarritz, com a exibição de Proibido Proibir, do diretor chileno-brasileiro Jorge Durán.

Durán não gostou da comparação entre o longa francês e o brasileiro. Na pré-estréia de seu filme, no Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, o diretor escarneceu: “não foi Truffaut que inventou o triângulo amoroso”.

Apesar do comentário de Durán, Proibido proibir trata de um triângulo amoroso, um triângulo cujos vértices têm nomes: Paulo, Leon e Letícia.

Paulo (Blat), estudante de medicina cujo lema é, cinicamente, “proibido proibir”, divide uma quitinete com seu melhor amigo, Leon (Alexandre Rodrigues), aluno de ciências sociais. As diferenças entre os dois já começam no futebol: o primeiro torce pelo Botafogo, o segundo é Flamenguista. Enquanto Paulo usa drogas, leva uma vida boêmia e aparentemente sem se preocupar com o mundo que o cerca, Leon já é um rapaz engajado, politicamente correto e que desenvolve um programa social com crianças carentes. Leon namora Letícia (Maria Flor), romântica e, ao mesmo tempo, forte estudante de arquitetura por quem também Paulo se apaixona.


O conflito amoroso entre os estudantes vai ser cruzado e, ao mesmo tempo, agitado por uma trama paralela, de viés mais social. O trio resolve ajudar uma paciente terminal do Hospital Universitário a rever seu filho, perseguido por policiais corruptos. É nesse momento que os três jovens de classe média se embrenham nas favelas cariocas e deparam-se com a verdadeira realidade “podre” do mundo (num recorte distinto da recente safra de filmes nacionais). Em um dos momentos de maior densidade do longa, Letícia desabafa: “Tá tudo podre. A gente se finge de cego pra não ver”.


O inconformismo político, não necessariamente engajado – o que diz muito respeito à geração atual –, do trio mais seus conflitos amorosos se enlaçam de forma harmoniosa e coerente, o que resulta num filme bonito, fluente e verossímil, com diálogos bastante densos. Durán credita todo o realismo com que o cotidiano e o interior das personagens são construídos aos seus alunos universitários. Professor de cinema, ele autoriza que o pessoal “coloque o dedo” no filme, que exponha suas idéias e realize mudanças. Durán autoriza o mesmo aos atores. O final, por exemplo, seria diferente – segundo ele – se essas “mexidas” no roteiro não fossem autorizadas.

Proibido proibir tem um desfecho em aberto dos mais bonitos do cinema nacional. Assim como o restante de todo o filme, não há idealização, não há saídas fáceis, há a realidade de um rito de passagem de três jovens para a vida adulta.

Colaborou também para a qualidade do longa o elenco de jovens atores, com destaques sobretudo a Caio Blat, que consolida seu lugar no cinema nacional, e a Maria Flor (subaproveitada agora em telenovelas globais). Outro ponto alto do filme são as locações na zona norte carioca, incomum no cinema nacional (acomodado ao binômio zona sul / morros cariocas).


Proibido proibir é mais um filme sobre triângulos amorosos, mas não é só um filme de triângulos amorosos. É um filme sobre se inconformar, um filme sobre lutar, um filme sobre crescer.


Proibido proibir

(Brasil / Chile – 2006)

Direção: Jorge Durán

Elenco: Caio Blat, Alexandre Rodrigues, Maria Flor

Duração: 100 min.

22.5.07

Casos do acaso

Henrique Hiraoka

Diz a sabedoria popular que ninguém está satisfeito com aquilo que tem. As personagens de Um Lugar na Platéia parecem concordar com esse ditado. Jéssica (a carismática e talentosa Cécile de France) é uma garota do interior que se muda para Paris a fim de curar uma dor de cotovelo e acabar com a monotonia de sua vida. Catherine (Valérie Lemercier numa atuação inspiradíssima) é atriz e protagoniza uma popular série de tv, porém não se sente realizada nem com a fama, nem com a fortuna que ganha por episódio do programa. Lefort (Albert Dumontel numa emocionante performance) é um pianista bem sucedido que a cada dia está mais entediado por causa de sua exaustiva rotina de apresentações, ensaios e entrevistas. Grumberg dedicou a vida colecionando obras de arte e repentinamente decide vender todas suas relíquias que possui. Essas personagens e tantas outras têm as vidas entrelaçadas dias antes de três importantes acontecimentos: a estréia da peça de Catherine, o leilão de Grumberg e o concerto de Lefort. Elas se cruzam, se modificam (mesmo que inconscientemente) e são levadas a pensar sobre o que querem realmente da vida.

Sem protagonistas, no melhor estilo de Robert Altman, Um Lugar na Platéia transcende gêneros, fazendo rir e chorar. Com ótimas atuações, personagens críveis e diálogos deliciosos, o filme nos brinda com seqüências formidáveis, como aquela em que Lefort se rebela durante uma apresentação, libertando–se da vida luxuosa que o sufocava, e com esquetes hilárias, como quando Catherine tenta convencer um importante cineasta que é a atriz perfeita para estrelar sua próxima produção, embora os dois tenham visões diferentes sobre a personagem. Valérie Lemercier, por sinal, consegue a proeza de ter uma interpretação por vezes teatral, sem soar ridícula ou “over”.

Acompanhando cada personagem, percebemos que por trás das desilusões, sempre existe um fio de esperança, vemos que é preciso coragem para assumir nossos íntimos desejos e que fazer o que os outros esperam, seguindo convenções pré–estabelecidas, não é garantia nem de felicidade, nem de satisfação. O filme mostra que o acaso faz parte de nossa existência e que as interações que temos uns como os outros, por mais banais que possam parecer, são capazes de ter um efeito decisivo em nosso futuro. Um Lugar na Platéia defende a idéia de que a fama, o conforto e o dinheiro podem ser perigosas prisões que envolvem e ludibriam nossos sentidos, impedindo a percepção de que a felicidade está contida nas coisas simples da vida.

Tendo em mãos uma história simples e aparentemente ingênua, a diretora Daniele Thompson cria uma belíssima crônica do cotidiano. Um Lugar na Platéia mostra que o que move as pessoas é a insatisfação, e o mundo não é necessariamente dividido em palco e platéia.


Um Lugar na Platéia (Fauteuils d'Orchestre)

França, 2005

Direção: Danièle Thompson Elenco: Cécile de France, Albert Dupontel, Valérie Lemercier, Dani e Sydney Pollack Duração: 105 min

Um pouco de realidade

Tatiane Ribeiro

Misturar aprofundamento psicológico e personagens perturbadas pode se tornar problema, mas com certeza não o foi para a diretora Pernille Fischer Christensen, que marcou sua estréia em longas metragens (até então havia feito apenas curtas e médias metragens) com um filme envolvente e tentador.

A história de “Além do Desejo” se passa entre dois vizinhos: uma mulher confusa que fugiu do namorado enquanto esse viajava e um transexual que espera uma autorização do governo dinamarquês para fazer uma cirurgia de mudança de sexo. Se isso parece complicado, misture aí o medo de Charlotte (Trine Dyrholm) de ficar sozinha, caracterizado por sua insistência em deixar suas coisas em caixas, ao invés de arrumar seu novo apartamento. Além disso, Verônica (David Dencik), o transexual, vive uma guerra interna entre viver com sua dor interior, que inclui a não aceitação de seu pai, o fato de ser prostituta, o medo e a angústia da mãe, ou se matar.

A história fica mais sedutora quando Verônica, após briga com a mãe, tenta se matar ingerindo uma quantidade muito grande de calmantes. Seu cachorro, que aliás deveria ganhar um prêmio pela brilhante atuação, não pára de latir, preocupado com o dono. Charlotte, que não consegue dormir com tanto barulho, desce para o apartamento do vizinho para reclamar, e acaba se deparando com Verônica desmaiada.

Após recuperação no hospital, Verônica se vê obrigada a retribuir de alguma forma a vizinha, e eles acabam se envolvendo cada vez mais. E isso é só o começo. O filme vai te prendendo cada vez mais por sua trama aparentemente simples, por ter o formato típico das “soap operas”, mas que a cada parte vai se complicando mais.

O formato escolhido ajuda o espectador a entrar mais na trama, sem se perder nela. O mesmo acontece com o enquadramento, que faz com que nos sintamos dentro da cena, como se pudéssemos mudar alguma coisa. O narrador, que faz um pequeno resumo comentado, parece explicar o que aconteceu, mas, como nas novelas típicas americanas, só faz com que o espectador se sinta mais envolvido, mas sem conseguir entender realmente o que aconteceu.

Um filme com tantas cenas de sexo e violência, trilha em uma linha tênue entre o belo e o vulgar. A diretora, ciente disso, soube não atravessar essa linha, fazendo de “Além do Desejo” um filme sem nenhum exagero. O mais importante do filme não é o que vai acontecer com cada personagem no final. Isso pouco importa, na verdade. O importante é sair da sala com a mente aberta o suficiente para perceber que nem sempre queremos aquilo que achamos que queremos e que não importa se o realizaremos ou não, nunca nos sentiremos totalmente realizados.

No fim, saímos nos sentindo mais vivos, mais reais. O que realmente sabemos de nós mesmos? Será que sabemos quem somos ou quem queremos ser? O que nem Freud conseguiu explicar, fica nas entrelinhas de um filme marcante, provocante e cheio de segundas intenções.

Além do Desejo (A Soap / En Soap)

Dinamarca, 2005

Direção: Pernille Fischer Christensen Elenco: Trine Dyrholm, David Dencik, Frank Thiel

Duração: 104 min.

2.5.07

As Cores e os Sons da Cegueira

Rafael Benaque

É difícil ver um filme baseado em fatos reais que não seja romantizado e/ou exagerado. Porém, “Vermelho como o Céu”, que conta como o famoso editor de som Mirco Mencacci perdeu a visão, do diretor Cristiano Bortone, consegue fugir desse padrão. Tudo começa em uma pequena cidade perto de Piza, em 1970. Foi nesse ano que Mirco, então com 10 anos, brincando com a espingarda do pai perdeu a visão e por causa de uma lei italiana da época que afirmava que os cegos não são capazes de freqüentar escolas para “pessoas normais”, o garoto foi transferido para o Instituto Cassoni, um colégio especializado em crianças com deficiência visual.

É nesse instituto que o jovem Mencacci (Luca Capriotti) começa a demonstrar o seu talento para a edição de som. Para realizar um trabalho sobre a natureza, ele, junto com seu amigo Felice (Simone Gullì), rouba um gravador e fitas da sala dos professores, e começa a gravar sons e editá-los. Isso lhe causa problemas com o diretor e desperta o interesse de seu professor Don Giulio (Paolo Sassanelli).

É nesse contexto que se insere o roteiro assinado por Bortone e Paolo Sassanelli que, apesar de caminhar à beira do abismo do clichê moralizante em seu final, se mostra leve e sutil. O diretor Bortone conduz o filme também de forma suave e despretensiosa, sem perder o espectador em nenhum momento. Além do roteiro e direção eficientes, os tons pastéis da fotografia e a trilha sonora, que vai se tornando mais presente e mais intensa com o desenrolar da história, são determinantes para criar uma atmosfera que valoriza a audição em detrimento da visão.

“Vermelho como o Céu”, vencedor do prêmio do público de melhor filme estrangeiro na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado, é um belo e competente filme que demonstra na moderação das emoções e na leveza da narração toda a sua qualidade e poesia.

Vermelho como o Céu (Rosso como il cielo)

Itália, 2006

Direção: Cristiano Bortone Elenco: Luca Capriotti, Parizia La Fonte e Paolo Sassanelli Duração: 96 min

“Assim externarei a lembrança de um passado sombrio”


Tatiane Klein

Das várias impressões artísticas e intelectuais sobre os anos da ditadura no Brasil, talvez a menos esperada pelo“grande público seja a de um frei dominicano – mesmo que o nome dele não esteja desvinculado de muitos jornais, revistas e websites. Tendo realizado de um modo bastante particular o desejo revelado por um dos últimos versos de Frei Tito de Alencar Lima (registrado no título desse texto), o conhecido Frei Betto, autor do livro de memórias Batismo de Sangue, guerrilha e morte de Carlos Marighella, desvela uma série de identidades apagadas pela violência do regime e esquecidas pela história.

Com a mesma intenção, o filme homônimo de Helvécio Ratton procura se descolar da matriz literária e apresentar outras óticas sobre o drama narrado por Betto (Daniel de Oliveira). Ora mesclando passagens separadas no livro em uma única cena, ora ressaltando elementos pouco enfocados pela obra original, Batismo de Sangue não se concentra na história de Marighella e sua relação com os dominicanos da Teologia da Libertação, e procura exaltar os dramas pessoais que permearam esse cenário histórico.

Aí mora o grande problema: o afastamento em relação ao livro (que compartimenta em seus capítulos histórias fechadas em si, mas conectadas por uma temática) não parece muito bem sucedido. A linha-guia da narrativa tem a intenção de ser definida pelos personagens e suas experiências, mas, porque se achou necessária uma contextualização histórica, os trechos em que as experiências não são os pontos primordiais se tornam apêndices que causam estranhamento.

As reuniões para os congressos da UNE, o ambiente na USP e os diálogos nos corredores do Mosteiro de São Domingos são quase cenários forjados para explicar os rumos da história. Se fosse tomada uma perspectiva mais apontada para o material humano presente na história, estes termos acessórios podiam ganhar mais caráter de comentário esparso do que de lição superficial sobre os tempos da ditadura. Não há rigor contextual, nesse sentido.

O esforço do filme em descentrar-se da figura de Marighella (e afastar a polêmica da relação dos dominicanos com a morte do revolucionário da Aliança Nacional Libertadora) acaba por transformar esse último num líder-fantoche que aparece, de vez em quando, para instruir seus seguidores. Ademais, o filme deixa de negar a versão policial sobre a morte de Marighella (a versão que “culpa” os frades torturados por levarem o líder ao encontro do pessoal do Esquadrão da Morte), o que faz o livro de Betto, apresentando argumentos que praticamente comprovam a encenação da morte do revolucionário.

A estética escolhida por Ratton só ganha força (e deve ser louvada por isso) quando é colocada em cena a miséria de Frei Tito, atormentado psiquicamente por conta da tortura. Obviamente, essa força tem origem na história real de Tito e no relato detalhado que Betto faz dele, mas tanto a atuação de Caio Blat quando o ambiente fotográfico das cenas que ele protagoniza, testemunham muito bem essa angústia. Para alguns pode parecer um sensacionalismo calcado em gritos entre choques elétricos e espancamentos, mas são só essas imagens que permitem a relação do batismo com o sangue. Ratton, formado em Psicologia, não podia deixar de notar o que foi responsável por destruir, além dos corpos dos presos nas catacumbas do DEOPS, a psique do cearense poeta cantarolante Tito. Mais: não podia deixar de revelar que isso ocorria não só com comunistas leigos.

O que salva o filme de Ratton da perdição dada pela falta de coesão entre os dramas particulares e a trama contextual é o belo diálogo que se consegue apresentar ao público pela da relação entre a fé cristã e a perspectiva política marxista. Quebrados por dentro e por fora, os dominicanos não aparecem como santos-mártires da religião, nem a religião católica é colocada como elemento de “santificação” do movimento revolucionário da época.

A tradução desse canto “humano, demasiado humano” da história fica muito claro na cena que abre e fecha o filme. O que é “sagrado” pôde também ser profanado e todos aqueles que podiam se segurar em algo para suportar a violência (nesse caso, em deus ou na idéia dele), também eram capazes de ser destituídos de suas identidades. Forte, ainda que traído por escolhas do roteiro, Batismo de Sangue não perde o ranço de realidade desesperadora do relato original: emociona e machuca quem assiste. Enfia demônios pra dentro de nossa própria goela; destrói o trivial que nos abarca e mostra da hóstia uma face desconhecida: aquela que não é branca e não resplandece porque desceu do altar; desceu o altar e se fez em bolacha de maisena com suco de uva artificial.

Batismo de Sangue

Brasil, 2006

Direção: Helvécio Ratton Elenco: Caio Blat, Daniel de Oliveira, Ângelo Antônio, Marku Ribas e Cássio Gabus Mendes Duração: 110 min.