« Home | » | Ilusão de ótica » | Morte aos leões » | Jantando no Inferno » | O Infiltrado » | Por que você não me conta um segredo? » | Motocicleta Sonora » | Oscar 2007 » | 16/02 - Resenhas Novas » | Crônicas do sol nascente »

“Assim externarei a lembrança de um passado sombrio”


Tatiane Klein

Das várias impressões artísticas e intelectuais sobre os anos da ditadura no Brasil, talvez a menos esperada pelo“grande público seja a de um frei dominicano – mesmo que o nome dele não esteja desvinculado de muitos jornais, revistas e websites. Tendo realizado de um modo bastante particular o desejo revelado por um dos últimos versos de Frei Tito de Alencar Lima (registrado no título desse texto), o conhecido Frei Betto, autor do livro de memórias Batismo de Sangue, guerrilha e morte de Carlos Marighella, desvela uma série de identidades apagadas pela violência do regime e esquecidas pela história.

Com a mesma intenção, o filme homônimo de Helvécio Ratton procura se descolar da matriz literária e apresentar outras óticas sobre o drama narrado por Betto (Daniel de Oliveira). Ora mesclando passagens separadas no livro em uma única cena, ora ressaltando elementos pouco enfocados pela obra original, Batismo de Sangue não se concentra na história de Marighella e sua relação com os dominicanos da Teologia da Libertação, e procura exaltar os dramas pessoais que permearam esse cenário histórico.

Aí mora o grande problema: o afastamento em relação ao livro (que compartimenta em seus capítulos histórias fechadas em si, mas conectadas por uma temática) não parece muito bem sucedido. A linha-guia da narrativa tem a intenção de ser definida pelos personagens e suas experiências, mas, porque se achou necessária uma contextualização histórica, os trechos em que as experiências não são os pontos primordiais se tornam apêndices que causam estranhamento.

As reuniões para os congressos da UNE, o ambiente na USP e os diálogos nos corredores do Mosteiro de São Domingos são quase cenários forjados para explicar os rumos da história. Se fosse tomada uma perspectiva mais apontada para o material humano presente na história, estes termos acessórios podiam ganhar mais caráter de comentário esparso do que de lição superficial sobre os tempos da ditadura. Não há rigor contextual, nesse sentido.

O esforço do filme em descentrar-se da figura de Marighella (e afastar a polêmica da relação dos dominicanos com a morte do revolucionário da Aliança Nacional Libertadora) acaba por transformar esse último num líder-fantoche que aparece, de vez em quando, para instruir seus seguidores. Ademais, o filme deixa de negar a versão policial sobre a morte de Marighella (a versão que “culpa” os frades torturados por levarem o líder ao encontro do pessoal do Esquadrão da Morte), o que faz o livro de Betto, apresentando argumentos que praticamente comprovam a encenação da morte do revolucionário.

A estética escolhida por Ratton só ganha força (e deve ser louvada por isso) quando é colocada em cena a miséria de Frei Tito, atormentado psiquicamente por conta da tortura. Obviamente, essa força tem origem na história real de Tito e no relato detalhado que Betto faz dele, mas tanto a atuação de Caio Blat quando o ambiente fotográfico das cenas que ele protagoniza, testemunham muito bem essa angústia. Para alguns pode parecer um sensacionalismo calcado em gritos entre choques elétricos e espancamentos, mas são só essas imagens que permitem a relação do batismo com o sangue. Ratton, formado em Psicologia, não podia deixar de notar o que foi responsável por destruir, além dos corpos dos presos nas catacumbas do DEOPS, a psique do cearense poeta cantarolante Tito. Mais: não podia deixar de revelar que isso ocorria não só com comunistas leigos.

O que salva o filme de Ratton da perdição dada pela falta de coesão entre os dramas particulares e a trama contextual é o belo diálogo que se consegue apresentar ao público pela da relação entre a fé cristã e a perspectiva política marxista. Quebrados por dentro e por fora, os dominicanos não aparecem como santos-mártires da religião, nem a religião católica é colocada como elemento de “santificação” do movimento revolucionário da época.

A tradução desse canto “humano, demasiado humano” da história fica muito claro na cena que abre e fecha o filme. O que é “sagrado” pôde também ser profanado e todos aqueles que podiam se segurar em algo para suportar a violência (nesse caso, em deus ou na idéia dele), também eram capazes de ser destituídos de suas identidades. Forte, ainda que traído por escolhas do roteiro, Batismo de Sangue não perde o ranço de realidade desesperadora do relato original: emociona e machuca quem assiste. Enfia demônios pra dentro de nossa própria goela; destrói o trivial que nos abarca e mostra da hóstia uma face desconhecida: aquela que não é branca e não resplandece porque desceu do altar; desceu o altar e se fez em bolacha de maisena com suco de uva artificial.

Batismo de Sangue

Brasil, 2006

Direção: Helvécio Ratton Elenco: Caio Blat, Daniel de Oliveira, Ângelo Antônio, Marku Ribas e Cássio Gabus Mendes Duração: 110 min.