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Crônicas do sol nascente

Carlos Giffoni e Tatiane Klein

Àqueles que entrarem na sala de projeção esperando assistir um “resgate do soldado ryan nipônico”, certamente serão surpreendidos por um filme, no mínimo, peculiar. No mínimo, porque em Cartas de Iwo Jima, Clint Eastwood apresenta o outro lado da história de A Conquista da Honra, mas não simplesmente o trivial outro lado. A versão japonêsa da emblemática batalha de Iwo Jima, durante a segunda grande guerra, é feita a partir de crônicas personalistas bastante ricas, capazes de revelar as congruências e incongruências das culturas que se punham em conflito.


O drama histórico de Iwo Jima nasce no momento da pesquisa para montagem de A Conquista da Honra, quando Eastwood começa a notar que as estratégias do General Kuribayashi permitiam aos soldados japoneses uma resistência impensável se considerada a forma como estavam encurralados na ilha e a incompatibilidade de seu material bélico com o estadunidense. Mais que o outro lado da moeda, Eastwood termina, na pesquisa sobre os milhares de jovens soldados que defenderam Iwo Jima, descobrindo homens; homens que, certos da morte, engoliam as areias negras da ilha e faziam, não conquistar a honra, mas mantê-la. É assim, inclusive, que se inicia a versão nipônica sobre a famigerada batalha.

Chama muito à atenção o jeito como se costura a narrativa, em que as personagens apresentam material para a construção de uma mais rica história. Cada nó narrativo é iniciado ou finalizado por uma das cartas – o texto é um memorial desenvolvido a partir dos documentos encontrados na ilha. A edição, assim, não é linear, pois divaga entre o passado e o presente de algumas personagens, mostrando suas origens, o motivo que os levara àquele lugar e justificando os seus sentimentos diante do que parecia, e foi, o fim de muitos deles.

Dentre os personagens, destaca-se o General Tadamichi Kuribayashi (brilhante
performance de Ken Watanabe), um homem de fibra, muito introspectivo, mas que conseguia aliar a essas suas características as técnicas exigidas pela arte da guerra. Kuribayashi, anteriormente, já havia morado nos Estados Unidos, o que serviu de empecilho na hora de conduzir homens que, apesar de dispostos a doar suas vidas pelo império e pelo imperador, não demostravam muita confiança naquele que os conduzia, visto sua admiração e a relação próxima que o General mantivera uma vez com americanos.

Saigo (Kuzanari Ninomiya), o padeiro que foi levado à falência indiretamente pela guerra, é outro personagem que se destaca, não somente por sua triste história, mas principalmente pelo papel que acaba exercendo junto aos colegas do campo de batalha, inclusive quando reflete sobre eles, os soldados, estarem ou não cavando suas sepulturas na ilha. A visão crítica e pessimista – que todo pessimista diria na verdade ser realista – de Saigo dubla os verdadeiros sentimentos da platéia que se sente à vontade para mudar de lado minuto a minuto. Isso porque é a voz de Saigo uma das principais reveladoras de uma vontade de sobrevivência que transcende a honra às tradições: enquanto alguns escolhem o suicídio, o padeiro se embrenha pelas mais de 200 passagens construídas a mando de Kuribayashi no interior da ilha. Talvez daí a identificação do ocidental com personagens como Saigo e Kuribayashi: é neles que a guerra perde a aura estratégica e se mostra como a situação ímpar, violação de corpos e mentes, em que a condição humana é questionada.

Foi desenhando sob a perspectiva da tradição japonesa que o diretor, que nem sabia falar o mesmo idioma de seu elenco, soube orquestrar os vários ecos históricos das memórias encontradas nas cartas sem descambar para o documentário enfadonho ou o melodrama chocante. Fica o refinamento estético aliado a uma narrativa sem pretensões ególatras ou moralistas. Este é uma das poucas produções cinematográficas que contam a participação do Japão na Segunda Grande Guerra, e mais, apontam as diferenças culturais entre os exércitos: até mesmo para os atores japoneses, mais familiarizados à ideologia ocidental, chega a ser incompreensível a resistência dos soldados que gritavam “Banzai!” contadas nas cartas de Iwo Jima. As falas sobrepostas no roteiro de Iris Yamashita poucas vezes parecem não serem parte de uma produção genuinamente japonesa, tão forte é o embate entre a tradição da honra e o desejo de honrar a vida.

Os prêmios recebidos pelo filme e as indicações ao Oscar podem até ser reflexo do reconhecimento um pouco forçado de que também estes soldados eram homens, homens como os americanos; bem no estilo da mentalidade pseudopluralista que às vezes afeta a cultura estadunidense, mais especificamente, a indústria cinematográfica e os simpatizantes da academia, como várias vezes já fora feito antes com homossexuais, mulheres e negros. Ainda assim, não se pode negar a excelência técnica e humana da produção, já que não é de graça (e nem em 5 minutos) que se monta um cenário tão verossímil quanto emocionante como o que há na Iwo Jima de Eastwood. Em técnica, não se trata de apenas mais um filme de guerra; há diferenciais que vão desde a narrativa sóbria até o bê-a-bá exigido em cenas de bombardeios e duelos balísticos. Se o que é necessário para ganhar indicações ao Oscar de edição de som e mixagem é fazer quem assiste o filme se sentir dentro da tela, Cartas de Iwo Jima faz jus às suas.

Ao final, um sol avermelha no horizonte, e fica clara a lógica desse edifício de
intensas palavras e imagens que é Iwo Jima: o que sobra do Japão enterrado na ilha acinzentada? Sobra o olhar humano; o olhar que sobrevive e, mesmo estuprado pelo conflito, consegue se equilibrar entre reconhecer, manter e honrar a tradição sem ter de fincar bandeiras ou levantar a voz em domínio. Não é a negação do inimigo nem a afirmação da pátria, mas a consciência do que é a guerra e de seus efeitos. O indivíduo sutil vê o sangue companheiro manchar o céu e hastear outras bandeiras; menos rígidas ou palpáveis que as ocidentais, mas ainda signos de vozes honrosas, as bandeiras de sol.

Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima)
EUA, 2006
Direção: Clint Eastwood
Elenco: Ken Watanabe, Kazunari Ninomiya, Tsuyoshi Ihara, Ryo Kase Duração:141 minutos