« Home | Vidas em Retrato » | Procura, mas não acha » | Doce amargo » | Presos sempre na mesma torre » | Naquele dia ele escolheu entrar no Blog sala de pr... » | Fingindo ser o que já se é » | Preciosa desgraça » | 100 RPM » | Ratos, sapos e lesmas cantoras » | O Anti-007 »

Identidades em esboços

Luiz Prado

Que o cinema de animação não é coisa só para crianças já se sabe há muito tempo. Que, uma vez ou outra, esse cinema é capaz de produzir obras-primas também é conhecimento antigo. Porém, é com O Homem Duplo que se constata o êxito dessa técnica no exercício da reprodução das relações humanas.

Sete anos no futuro, os Estados Unidos travam um combate sem esperança contras as drogas.
Cerca de 20% da população é composta de viciados e a poderosa Substância D cria mais dependentes a cada dia. Nesse cenário está Bob Arctor (Keanu Reeves), um policial disfarçado com a missão de espionar seus amigos viciados, Jim Barris (Robert Downey Jr.), Ernie Luckman (Woody Harrelson), Donna Hawthorne (Winona Ryder) e Charles Freck (Rory Cochrane). A vida de Arctor entra em colapso quando recebe ordens de vigiar a si mesmo, levando-o a uma trilha paranóica propiciada pelo abuso das drogas e suas incertezas sobre identidades e lealdades.

Adaptado do romance "A Scanner Darkly", do conceituado autor de ficção científica Philip K. Dick (cuja obra já foi levada ao cinema em filmes como Blade Runner - O Caçador de Andróides, O Vingador do Futuro e Minority Report - A Nova Lei), o filme se destaca não só pelo processo de animação (chamado rotoscopia, que consiste em registrar tudo como numa produção convencional e depois animá-la sobre os atores e cenários) mas também pela maneira escolhida pelo diretor Richard Linklater de transpor a história original para a película. Ao invés de se prender ao enredo e se preocupar em criar uma história facilmente digerível, Linklater preferiu focar sua atenção na convivência de Arctor e seus amigos, retratando o futuro não pelas suas maravilhas tecnológicas, mas através do que pensam e como agem as pessoas que nele vivem.

Seja nas ações paranóicas do pouco confiável Barris (cuja atuação Downey Jr. torna memorável), na crise de dependência profunda de Freck ou no medo de contato físico de Donna, temos registrado o estado de espírito de pessoas sufocadas pelo sistema, pela constante vigilância das câmeras da polícia e pela ameaça de se verem confinadas numa das unidades da clínica para dependentes New Path. Estado de espírito que muito lembra o vivido pelos estadunidenses em dias de Ato Patriótico e de Guerra ao Terror.

Por essa preferência em deixar os personagens falarem pelo cenário, o diretor teve também
liberdade para mostrar na tela todas as paranóias e alucinações dos personagens. A missão de Arctor pouca importância tem no enredo por si só. Ela vale enquanto cria o estado de queda do personagem, colocando seu frágil seu equilíbrio em risco. Da mesma forma, todo o futuro só tem validade no filme ao imprimir sua marca nos personagens, criando as situações para os diálogos de humor cáustico e trágico. Em O Homem Duplo, o futuro não se mostra nos benefícios para a vida prática dos homens, mas nos efeitos que produz no interior de cada um deles.

O Homem Duplo (A Scanner Darkly)
EUA, 2006
Direção: Richard Linklater Elenco: Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Wood Harrelson, Winona Ryder e Rory Cochrane Duração: 100 min.