25.10.06

Tá na Mostra: Cabelos Embaraçados


Guilherme Barros


Melissa é uma menina de dezesseis anos que mora com a mãe e a avó em uma pequena cidade italiana. Ela se encontra naquela fase de autoconhecimento e confusão pela qual os adolescentes normalmente passam. Começa a descobrir o sexo e a viver as confusões amorosas que vão guiá-la na passagem da vida de menina para a maturidade.

Perdida, ela não conta com a ajuda da mãe, que se encontra imersa em seus próprios afazeres de adulta. Na família, só encontra amparo nos braços da avó roqueira e liberal. Foi esta que passou à menina a tradição de dar cem escovadas no cabelo antes de dormir.

Em meio a toda problemática psicológica comum à sua idade, a garota perde a virgindade. Só que de mágica e maravilhosa sua primeira vez não tem nada. Melissa é apaixonada por seu colega de escola Daniele, com quem acaba transando. Ela se entrega de corpo e alma para satisfazê-lo, mas é humilhada e rebaixada a mero joguete sexual dele e de seus amigos.


Amargurada resolve se vingar do mundo masculino assumindo as rédeas de sua vida amorosa. Para isso começa uma jornada de depravação e sofrimento na qual faz sexo com todos de todos os tipos, das mais diversas maneiras. Até mesmo grupal e sadomasoquista. É nisso que filme se foca, nas peripécias sexuais da protagonista. Como que para exercer a revanche nos homens que lhe fizeram mal, ela precisasse se autoflagelar, sofrer e fazer sofrer pelo corpo. Um retrato do sexo sem amor, mas também sem prazer.

E quanto mais ela insistia nesse comportamento destrutivo, mais perdia contato com seus entes queridos. Melissa começa a se distanciar das pessoas que tinham ligações com a sua infância. A avó sai de casa e a menina briga com sua melhor amiga Manuela. O ritual de passagem para a vida adulta está completo e sua vida se encontra num ponto degenerativo quase sem volta.

100 Escovadas Antes de Dormir é um filme que pretende ser provocante e polêmico, assim como o livro em que se baseou. Talvez por ter sido escrito por uma menina que diz realmente ter vivido as histórias, o romance conseguiu agitar a cena literária européia. Mas a película não consegue atingir esse intento, não acrescenta diante de tantos outros filmes pesados baseados em fatos reais existentes, de melhor qualidade e de mais impacto. Como se não bastasse, o enredo ainda termina de forma moralista e redentora, contradizendo sua proposta premissa de elucidação subversiva.

100 Escovadas Antes de Dormir (Melissa P.)
Itália/Espanha/EUA, 2005
Direção: Luca Guadagnino Elenco: Maria Valverda, Geraldine Chaplin, Primo Reggiani, Maria Teresa Bagardo e Letizia Ciampa Duração: 100 min.

A história da boca que sangra contra a sangria da memória

Tatiane Klein

Se os 103 minutos desse filme, indicado à Palma de Ouro por melhor direção, tivessem apenas o caráter de informar ao espectador uma das muitas atrocidades cometidas durante a ditadura que contaminava a Argentina desde 1974 e toma corpo oficial em 24 de março de 1976, já seria o bastante. Fazer história através do vídeo para evitar o esquecimento -como aponta a também argentina crítica literária Beatriz Sarlo, em Paisagens imaginárias- conta, e muito, para dar muletas à essa memória manca da barbárie observada na América Latina durante os anos 60 e 70. Entretanto, o filme, de roteiro inspirado no livro Pase libre, crónica de una fuga, de Cláudio Tamburrini, não se resume ao testemunho emocionado da história real do autor, prisioneiro na Mansion Seré durante 120 dias.

Crônica de uma fuga é contado a partir da perseguição e prisão de Cláudio (Rodrigo de La Serna, de Diários de Motocicleta), estudante de filosofia e goleiro do Club Atlético Almagro, em virtude de um suposto envolvimento com o movimento comunista. O clichê que pode em um primeiro momento aparecer na figura do mocinho preso por engano, ou do comunista herói (essas as duas possibilidades de função de Cláudio no início do filme) é desconstruído pela própria dubiedade que mistifica o protagonista: esse é o primeiro patamar de um suspense que não vai ser dissolvido facilmente. Após ser torturado em sua casa, ele é levado à Mansion Seré e, sem compreender muito bem o que acontece, é vendado e preso em um quarto junto a outro jovem. Nesse momento, pouco sabe Cláudio, e pouco sabe o público. Dificilmente conseguimos emitir um juízo estável sobre a verdadeira relação do personagem com o comunismo, e é sob essa tensão que o lugar comum vai ser abafado pelo realismo pungente dessa história. O dilema sobre os posicionamentos políticos de Cláudio vai ser logo desfeito, mas o clima de ebulição sensorial que ele inaugura, não.

Quanto à violência constante na tela, ela faz menos por anestesiar-nos diante da dor daqueles que são vigiados por homens, que oscilam entre o pai e o algoz, mas mais por gerar empatia imediata. Em alguns momentos, a crueldade narrada molda-se em tamanho realismo que chegamos a duvidar dos padrões comuns da verossimilhança: as cenas parecem olhares, a partir ângulos que distorcem a perspectiva da atrocidade comesinha (aquela que costumamos ver nos programas policiais de fim de tarde), exaltando um retrato praticamente hiper-real (próximo à ficção dos thrillers hollywoodianos). Sentados nas poltronas, somos embrenhados tão profundamente na história de paixão e sonho de redenção de Cláudio e três companheiros presos, Huguito, Guillermo e Gallego, que se tem a impressão da experiência mais que verdadeira, embora fantástica e inacreditável. A câmera, mesmo na posição tradicional da observação externa, se coloca de tal modo amarrada à perspectiva dos fugitivos, que o olhar do público é facilmente transportado aos nós do enredo.

Toda a estética cinematográfica nesta obra se apresenta quase como a de um filme de suspense comum, porém a perspectiva nauseante da realidade do relato impede que a exploração banal da estética da violência. A produção soube instrumentalizar ferramentas cinematográficas e envolvê-las em ambiente e enredo referentes a história da repressão pelas ditaduras militares na América Latina. A ela não compete discutir que conflito era esse, se da tentativa da civilização contra a resistência da barbárie, ou se de barbarizados contra barbarizados, numa luta em que cegos opressores ignoram que, talvez, os comedores de criancinhas não sejam os comunistas, mas a própria lógica do capital. Compete sim viabilizar aos que só tem a chance de ‘lembrar para não permitir que se repita’ tanto a observação de rascante realidade, quanto a sensação quase visceral dela.

Crônica de uma fuga fere à brasa a nostalgia negativa do espectador, incita o frio na espinha e o horror, através de imagens e sons que se revelam “com dor e verdade descarnada, mas também com toda a esperança e toda a vontade de viver com que os fatos realmente ocorreram”, segundo o próprio Cláudio Tamburrini, acerca de seu livro. E para não esquecer, não adianta só voltar o olhar, mas é preciso ainda, mesmo de forma imaginária, sentir o gosto do sangue entre os dentes quando das botinadas na cara deformada.

Crônica de uma fuga (Crónica de una fuga)
Argentina, 2006
Direção: Adrián Caetano Elenco: Rodrigo de La Serna, Pablo Echarri, Nazareno Casero, Lautaro Delgado e Leonardo Bargiga. Duração: 103 min