30.3.07

O Infiltrado

Rodolfo Mendes

A pergunta: um filme com mais de duas horas e meia, trama extremamente detalhada, com um protagonista nada carismático e com nomes fáceis de confundir pode ser considerado bom?


A resposta: nesse caso sim.

A segunda empreitada de Robert De Niro no comando de uma câmera (a primeira foi há catorze anos com Desafio no Bronx) já pode despontar como um dos melhores do ano, mesmo com películas como Homem-Aranha 3 e 300 a caminho.

O Bom Pastor narra a ascensão e consolidação da CIA, a agência de inteligência norte americana, tendo como linha condutora um de seus integrantes. De Niro e seu roteirista Eli Roth tecem toda trama a partir de um episódio emblemático: a tentativa de invasão de Cuba por parte dos EUA pela Baía dos Porcos, em 1961. Como todos sabem, a operação americana foi um fiasco, e é nesse ponto que entra o protagonista Edward Wilson (um Matt Damon agora especializado em papéis pesados e silenciosos), personagem cujas características propositalmente lembram alguns dos lendários diretores da CIA.

Wilson acredita que informações sobre localização exata do início da investida americana vazaram da agência, e a chave para este mistério está numa foto, que é esmiuçada durante as duas primeiras horas do filme. Conforme os detalhes da imagem vão ganhando significado e acrescentando informações, quadros da narrativa não linear do filme contam a trajetória de Edward desde sua iniciação com membros do serviço secreto, antes da segunda guerra mundial.

A transformação de Edward, conforme sua escalada até o alto escalão da CIA, exibe os aspectos mais nocivos de uma cultura que coloca o trabalho e o ofício (e seus ossos) em primeiro lugar, sobre os valores aos quais eles devem dar suporte. Os relacionamentos amorosos e de amizade cultivados pelo protagonista vão se desmanchando até o ponto em que ele se torna um completo estranho para sua linda mulher (Angelina Jolie) e seu filho.

Mas conforme se envolve cada vez mais com seu trabalho de coordenador de espionagem, Edward também começa a entender cada vez mais seu inimigo (no caso, a inteligência da URSS) por conta das necessidades de seu trabalho, assim, pelos mesmos motivos que se torna uma figura fria para seus conhecidos, também se torna uma pessoa cada vez mais entendida e também compreendida pelos seus rivais do além-cortina de ferro.

De Niro nunca escondeu as amizades que tinha com membros e ex membros da CIA, e aproveitou seu conhecimento sobre a instituição para polir e refinar seu roteiro. Somou a isso o seu prestígio para obter bons atores e a produção de um roteiro primoroso, realizando uma bela obra, que mesmo densa e cheia de detalhes, foca e conta com pormenores a deterioração do calor humano de um homem que a cada decisão faz um sacrifício de si (com direito à todas as referências freudianas que alguém pode encontrar).

Contudo, o filme também deixa claro o porquê e o para quem todo esforço que Edward empenha na agência são dirigidos: para proteção daquele a quem ele de fato estima: seu filho (por quem faz um sacrifício que só ele sabe se dará resultado ou não).

Mas como atestar a verossimilhança sobre um assunto tão obscuro e que se mantém um mistério até mesmo para quem de fato participou dos acontecimentos? De Niro responde: "eu desafio qualquer um envolvido com a CIA a apontar algum detalhe do filme que seja um absurdo". Pelo menos até agora, ninguém disse nada.

O Bom Pastor (The Good Shepherd)

EUA, 2006

Direção: Robert De Niro Elenco: Matt Damon, Angelina Jolie, Alec Baldwin, Billy Crudup e Robert De Niro Duração: 167 min.

17.3.07

Por que você não me conta um segredo?

Carlos Giffoni

Não, esta não é mais uma cinebiografia - como os créditos dizem no início do filme; mas sim, uma homenagem a um ícone no cenário mundial da fotografia, Diane Arbus. Bem, se Diane estivesse viva, diria que recebera um presente de grego!

O começo de "A Pele", dirigido por Steven Shainberg, nos faz pensar que estamos diante de mais um filme em que a figura feminina é reprimida diante de uma sociedade - no caso, a nova iorquina dos anos 60 - patriarcal, conservadora e acima de tudo, machista. Mas Diane (representada pela vencedora do Oscar de melhor atriz por "As Horas" - uma outra cinebiografia, a de Virginia Woolf -, Nicole Kidman) de algum modo consegue quebrar certas barreiras, até mesmo pela ajuda e incentivo de um homem moderno, seu marido Allan Arbus (Ty Burrell) fotógrafo renomado que tem como assistente a sua própria mulher. Já a rica família de Diane mostra-se como uma pedra no seu sapato, que faz questão de viver à medida de aparências, oferecendo coquetéis e reuniões de luxo para a alta sociedade, onde esbanjam e promovem a sua marca de roupas e acessórios de pele. É representando essa mulher reprimida, mãe de duas filhas, casada e fotográfa ao lado do marido que Nicole mostra as suas qualidades, mas só aí.

O filme foi inspirado no livro "Diane Arbus: A Biography", escrito por Patricia Bosworth. Porém, o roteiro adaptado é de Erin Cressida Wilson, que, diga-se de passagem, desperdiçou a história que poderia render uma bela produção.

A fantasia em que Diane se envolve com o seu misterioso vizinho, Lionel (Robert Downey Jr.), ultrapassa os limites do aceitável na construção de um roteiro para um filme considerado de adultos e cujo conteúdo deveria ser "dramático". No enlace dessa fantasia, estão personagens conhecidos de fotografias tiradas pela verdadeira Diane, como as duas irmãs siamesas e o homem gigante, mas todos eles representam uma metáfora que somente aqueles que conheceram a fotógrafa conseguem interpretar.

A partir do momento em que é dito não se tratar de uma cinebiografia, mas sim de uma homenagem, parece que os limites entre real e imaginário foram perdidos, pois não é vista uma homenagem aos moldes "normais", já que carreira, sucesso e realizações não conduzem o eixo da história contada. Diane, a personagem, perde-se numa aventura com Lionel (paixão proibida, ou desejo de fuga? ) e desde então sua vida é resumida a visitas para o vizinho, diálogos vazios e um conflito dentro de casa, o qual é administrado normalmente e com uma paciência ímpar mantida por Allan.

Decepcionante, tanto a tradução feita de Diane Arbus, como a maneira que sua história é reduzida, fazendo da personagem uma mulher aquém daquela mudou a história da fotografia.


A Pele (Fur: An Imaginary Portrait of Diane Arbus)
EUA, 2006,
Direção: Steven Shainberg Elenco: Nicole Kidman, Robert Downey Jr, Ty Burrell, Harris Yulin e Jane Alexander. Duração: 119 min.

11.3.07

Motocicleta Sonora

Tatiane Klein

Quem se deixar enganar pela referência do título Os 12 Trabalhos aos famosos doze trabalhos de Hércules e, acreditando que se trata de mais uma historinha à la Globo Filmes desprezar o filme, perderá uma das mais originais, inteligentes e belas produções do recente cinema brasileiro. Mesmo sendo uma verdadeira releitura do mito grego, o filme de Ricardo Elias ganha força justamente quando ultrapassa as fronteiras da narrativa que o inspira, sem, contudo, ignorá-la.


O corpo do filme se constrói de maneira a explicitar e reiterar não o mito e suas estruturas “históricas”, mas a possibilidade e necessidade de narrar, de tecer uma história. Não há deuses, titãs, oráculos, ou qualquer resquício de um universo maravilhoso; o diálogo com o Hércules grego é um pouco mais refinado. É em torno da tradição da narrativa mítica (como modo de contar e não um texto “fechado”) que vão ser exploradas a identidade do protagonista Héracles e as implicações de sua condição socioeconômica, sempre relacionadas ao espírito metropolitano de São Paulo.
Héracles, interpretado por Sidney Santiago (prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio de 2006), é ao mesmo tempo personagem e narrador de seu drama, preso a uma condição que não o define nem como soberano, nem como escravo de sua história. O semideus, aqui, é o garoto que não aceita o carimbo generalizante de “motoboy” e também se confunde com Genison, Cláudio, Anderson e até Márcia, todos os anônimos heróis das ruas de São Paulo.

Pra quem procura as entrelinhas da abordagem dada por Elias às relações entre periferia e centro, à problemática do trabalho informal nas grandes cidades e ao tema do jovem que busca a aceitação social depois de um período na Febem, fica mais que a impressão de um filme determinista sobre a miséria urbana brasileira. Em verdade, conhece-se que a realidade é que impressiona e condiciona a identidade do herói, mas também que ela é mediada e construída pelo próprio herói/narrador.
As ruas tomadas por carros e costuradas por motos, ao som da brilhante trilha de André Abujamra, revelam o olhar instantâneo do boy sobre a cidade e seus personagens, o que mistura a narrativa linear dos trabalhos, que Héracles vai realizando para a Olimpo Express (entregadora em que seu primo Jonas trabalha), à voz semidivina que se permite descrever e prescrever a história das pessoas que encontra durante o dia.

O garoto, que tem como hobby o desenho, também desenha sua história, contrapondo e comparando (indiretamente) biografias à sua. Enquanto assiste ao livre movimento da cidade, é enredado pela ordem dos faróis e das marginais, e o trânsito torna-se tanto algoz quanto patrono. Por fim, sobram imagens em que a câmera fica marejada tal qual os olhos do Heracles, violentado e acolhido pelo tal trânsito, no melhor formato urbano pro espírito da tragédia grega.

Lavrado pela ordem dos doze trabalhos, mas sem conhecer que neles reside sua redenção, Héracles é mais um jovem que caminha sem perspectivas e que, por conta desse niilismo implícito e verdadeiro, quase sai da tela e vira transeunte da Avenida Paulista. Esta aí um conto da contemporaneidade banhado em realismo: marcado pela moto que cai, pela fratura exposta na perna e pelas idéias daquele que passa veloz e vê o mundo. Ainda que poucas vezes visto por este; daquele faz entregas e se entrega.

Os 12 Trabalhos
Brasil, 2007. Direção: Ricardo Elias Elenco: Sidney Santiago, Flávio Bauraqui, Vera Mancini e Vanessa Giácomo. Duração: 90 min.