« Home | Oscar 2007 » | 16/02 - Resenhas Novas » | Crônicas do sol nascente » | Nunca desista de seus sonhos... Mais uma vez » | 09/02 - Resenhas Novas » | Um novo affair para Madame Bovary » | Identidades em esboços » | Vidas em Retrato » | Procura, mas não acha » | Doce amargo »

Motocicleta Sonora

Tatiane Klein

Quem se deixar enganar pela referência do título Os 12 Trabalhos aos famosos doze trabalhos de Hércules e, acreditando que se trata de mais uma historinha à la Globo Filmes desprezar o filme, perderá uma das mais originais, inteligentes e belas produções do recente cinema brasileiro. Mesmo sendo uma verdadeira releitura do mito grego, o filme de Ricardo Elias ganha força justamente quando ultrapassa as fronteiras da narrativa que o inspira, sem, contudo, ignorá-la.


O corpo do filme se constrói de maneira a explicitar e reiterar não o mito e suas estruturas “históricas”, mas a possibilidade e necessidade de narrar, de tecer uma história. Não há deuses, titãs, oráculos, ou qualquer resquício de um universo maravilhoso; o diálogo com o Hércules grego é um pouco mais refinado. É em torno da tradição da narrativa mítica (como modo de contar e não um texto “fechado”) que vão ser exploradas a identidade do protagonista Héracles e as implicações de sua condição socioeconômica, sempre relacionadas ao espírito metropolitano de São Paulo.
Héracles, interpretado por Sidney Santiago (prêmio de Melhor Ator no Festival do Rio de 2006), é ao mesmo tempo personagem e narrador de seu drama, preso a uma condição que não o define nem como soberano, nem como escravo de sua história. O semideus, aqui, é o garoto que não aceita o carimbo generalizante de “motoboy” e também se confunde com Genison, Cláudio, Anderson e até Márcia, todos os anônimos heróis das ruas de São Paulo.

Pra quem procura as entrelinhas da abordagem dada por Elias às relações entre periferia e centro, à problemática do trabalho informal nas grandes cidades e ao tema do jovem que busca a aceitação social depois de um período na Febem, fica mais que a impressão de um filme determinista sobre a miséria urbana brasileira. Em verdade, conhece-se que a realidade é que impressiona e condiciona a identidade do herói, mas também que ela é mediada e construída pelo próprio herói/narrador.
As ruas tomadas por carros e costuradas por motos, ao som da brilhante trilha de André Abujamra, revelam o olhar instantâneo do boy sobre a cidade e seus personagens, o que mistura a narrativa linear dos trabalhos, que Héracles vai realizando para a Olimpo Express (entregadora em que seu primo Jonas trabalha), à voz semidivina que se permite descrever e prescrever a história das pessoas que encontra durante o dia.

O garoto, que tem como hobby o desenho, também desenha sua história, contrapondo e comparando (indiretamente) biografias à sua. Enquanto assiste ao livre movimento da cidade, é enredado pela ordem dos faróis e das marginais, e o trânsito torna-se tanto algoz quanto patrono. Por fim, sobram imagens em que a câmera fica marejada tal qual os olhos do Heracles, violentado e acolhido pelo tal trânsito, no melhor formato urbano pro espírito da tragédia grega.

Lavrado pela ordem dos doze trabalhos, mas sem conhecer que neles reside sua redenção, Héracles é mais um jovem que caminha sem perspectivas e que, por conta desse niilismo implícito e verdadeiro, quase sai da tela e vira transeunte da Avenida Paulista. Esta aí um conto da contemporaneidade banhado em realismo: marcado pela moto que cai, pela fratura exposta na perna e pelas idéias daquele que passa veloz e vê o mundo. Ainda que poucas vezes visto por este; daquele faz entregas e se entrega.

Os 12 Trabalhos
Brasil, 2007. Direção: Ricardo Elias Elenco: Sidney Santiago, Flávio Bauraqui, Vera Mancini e Vanessa Giácomo. Duração: 90 min.